quarta-feira, dezembro 22, 2004

Solidão

O quotidiano de uma vida a dois é um constante sobressalto. Muitas pessoas poderão pensar que esta agitação se deve ao receio de perder a pessoa amada. Puro engano. O maior receio é ficar sozinho.
O comum dos mortais pensa que quando uma pessoa não tem “alguém” fica inferiorizado em relação aos demais. Temos vários exemplos para isto mesmo. Desde logo o facto de nunca conseguirmos comprar apenas um donuts num supermercado.
O texto que colocaremos a seguir é de Charles Baudelaire. Embora o tenha escrito no século XIX, é um texto que todas as pessoas deveriam ter em mente. Este texto faz parte da obra Petits Poèmes en Prose.

“Um jornalista filantropo diz-me que a solidão é prejudicial ao homem; e em apoio da sua tese cita, como todos os incrédulos, palavras dos padres da Igreja.
Eu sei que o Demónio frequenta voluntariamente os lugares áridos, e que o Espírito do homicídio e da lubricidade se inflama nas solidões maravilhosamente. Mas seria possível que tal solidão apenas fosse perigosa para a alma desocupada e divagante que a povoa com as suas paixões e com as suas quimeras.
Nas nossas raças tagarelas há indivíduos que aceitariam com a menor repugnância o supremo suplício, se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma copiosa arenga, sem o perigo de os tambores de Santerra lhes cortarem intempestivamente a palavra.
Não os lamento, pois adivinho que as suas efusões oratórias lhes facultam volúpias iguais às que os outros encontram no silêncio e no recolhimento; mas desprezo-os.
Desejo sobretudo que o meu maldito plumitivo me deixe gozar à minha maneira. “Você não experimenta nunca - diz-me ele num tom nasalado muito apostólico – a necessidade de partilhar as suas alegrias?” Vede o subtil invejoso! Ele sabe que eu desdenho das dele, e vem insinuar-se nas minhas, o odioso desmancha-prazeres!
“Essa grande desgraça de não se poder estar só!…” diz algures La Bruyère, como para envergonhar todos aqueles que correm a esquecer-se na multidão, temendo sem dúvida não poder suportar a si próprios.
“Quase todas as nossas desgraças nos vêm de não termos sabido conservar-nos no nosso quarto”, diz outro sábio, Pascal, julgo eu, chamando assim para a célula do recolhimento todos esses desvairados que procuram a felicidade no movimento e numa prostituição a que eu podia chamar fraternitária, se quisesse usar da bela linguagem do meu século.”

Verba volant, scripta manent.
Badoix