sábado, março 05, 2005

in memoriam

É com grande pesar, direi mesmo dor, que venho anunciar a partida daquele que foi talvez o maior poeta deste canto do mundo e, sem dúvida, o homem mais sábio que alguma vez conheci. José Inácio (também conhecido por Bexigoso) abominava a escrita biográfica: filho do Sol, este leitor de Cícero (lembremos o Sonho de Cipião da República) tinha uma concepção de imortalidade mais larga que duvido venha alguma vez a ser totalmente compreendida. Mas, generoso como era para com as muitas fraquezas dos menos iluminados, estou seguro de que me perdoaria deixar uma ou duas notas para a posteridade.
Considerado enfant terrible pela família, amigos e professores, viu-se forçado a abondonar a escola com a idade de oito anos. A sua educação foi entregue a um mestre de obras, momento a partir do qual enveredou pela carreira de operário da construção civil. J. Inácio, pouco dado a sentimentalismos fáceis, recordava-o com certa nostalgia. Dizia dele que "escarrava até cinco metros".
Bexigoso foi um poeta oral e, qual Sócrates, a sua vida foi o único livro que escreveu. Infelizmente isso significa que levou consigo a sua obra. Quando lhe perguntavam porque se recusava a deixar um registo dos poemas que compunha, respondia invariavelmente: "Isso é pra panascas!", clara alusão ao "Mataiotes ton mataioteton, ta panta mataiotes" do ascético S. João Crisóstomo, sem dúvida uma das suas leituras dilectas. Apesar disso, consegui salvar uma pequena amostra do seu génio que julgo será o suficiente para lhe assegurar o lugar justo na história da literatura. Trata-se de um haiku escrito em Japonês na porta da sua própria casa de banho depois de uma feijoada de marisco. O texto é absolutamente intraduzível, motivo por que o deixo aqui no original:

mam amo aki
haikussim hayno kunam
uika bomkhyé

Houve quem lhe chamasse poeta naïf. Pergunto-me que ingenuidade haverá neste milagre de métrica, nesta fusão das mais antigas tradições literárias nipónica e ibérica.

A sua trágica morte deu-se durante a minha visita ao hospital. J. Inácio olhou acidentalmente para dentro da farda da enfermeira quando esta se debruçava sobre ele para lhe levantar a almofada. Foi com o seu último suspiro que pronunciou as palavras "Eh carapau!". Fechou os olhos e partiu, como que a dizer-nos que toda a narrativa se torna impossível quando a felicidade suprema é alcançada, pois aí termina a sua finalidade. Exprimia-se assim: a mais pura verdade na linguagem mais pura. Duvido que voltemos a encontrar o seu génio.

Good night, sweet Bexigoso, and flights of angels sing thee to thy rest!

Buck Naked